“Eduardo Mãos-de-Tesoura” (Edward Scissorhands - 1990), de Tim
Quem me conhece sabe que sou fã acérrima da visão gótico-naïve do excêntrico Tim Burton; sendo um dos meus realizadores preferidos, é minha opinião que o brilhantismo da obra de Burton se suporta no facto de que ele, manifestamente, adora cinema e o seu trabalho – requisito fundamental para qualquer bom cineasta – e de que ele compreende a mente das crianças de forma que companhias de filmes infantis como Disney inveja. Tal como outro cineasta meu favorito, Hayao Mizayaki (Princess Mononoke, Spirited Away), Tim Burton não patroniza o seu jovem público nem sente necessidade de simplificar, embelezar, adocicar o material que lhes apresenta – não julga as crianças estúpidas e incapazes de prestar atenção a nada que seja menos brilhante e adorável. Pelo contrário, ele entende que as crianças são seres de tal complexidade psicológica que se tornam radicalmente diferentes dos adultos, absorvendo o mundo – e os filmes – de maneira diferente dos adultos. A imaginação, a permeabilidade, a amplitude psicológica de aceitação e processamento da realidade de uma criança nada têm a ver com a de um adulto – nada têm a ver, sequer, com a ideia mental que os adultos que fazem filmes para crianças fazem delas, e Burton trabalha baseado nesse princípio, produzindo narrativas de base simples mas tão ricas em elementos criativos que apelam ao mais profundo ser dos mais pequenos que chega até a ser assustador. Será um pouco negro, aqui e ali? Mas claro! Não são as crianças, do fundo da sua inocência – da sua incapacidade de separar o bem do mal, ou na sua diferente concepção que têm destes dois termos – as pessoas mais negras que por aí há? Quem esmaga bichinhos indefesos só para ver o que acontece? Quem ri das pessoas que caem ou que se magoam? Quem é brutalmente honesto e por vezes, mais que inconveniente? É a “falar por baixo” para as crianças, com filmes com animais enternecedores e lições de moral produzidas em série que outros cineastas produzem filmes reluzentes o suficiente para atrair a atenção dos mais pequenos mas que rapidamente se dissiparão na sua memória. Burton fala para a criança interior em todos nós na sua forma mais crua, mais humana, mais real, daí as suas “trips” de excentricidade serem tão relacionáveis.
Diz muito do trabalho de Tim Burton o facto que muitas das suas personagens e muitos dos conceitos que mais tarde originaram os seus filmes nasceram de rabiscos, desenhos que ele próprio fez nas margens do caderno quando era jovem. Este é o caso de Edward, o protagonista deste filme, um homem excepcionalmente gentil que tem longos dedos de lâminas afiadas de tesoura no lugar das mãos.
Edward (Johnny Depp) era a criação do Inventor, desempenhado por Vincent Price, um dos ídolos de Burton (sendo este o último filme de Price antes de morrer), construído a partir da adaptação de várias máquinas e com um coração feito de um biscoito em forma de coração, adquiriu humanidade, sentimentos, vida devido à devoção do Inventor, que tinha em Edward a única companhia no Mundo. No entanto, o Inventor morreu subitamente, antes de ter tempo de completar Edward, deixando-o sem mãos humanas, com grotescas próteses feitas de tesoura no seu lugar. Edward viveu sozinho no isolado castelo em ruínas do Inventor durante muito tempo, até que foi descoberto por uma bondosa vendedora de maquilhagem porta-a-porta, Peg (Diane Wiest) que se compadece dele e o leva a viver com a sua família, nuns subúrbios americanos paradigmáticos, completos com casinhas de várias cores e vizinhas bisbilhoteiras. O peculiar, mas extremamente dócil Edward rapidamente se torna na sensação do bairro e, devido aos seus dotes manuais, o jardineiro, cabeleireiro e estilista de cães mais popular da cidade.
“Eduardo Mãos de Tesoura”, tido como o “conto de fadas gótico” de Burton é o filme que colocou o jovem realizador no mapa (embora excelentes trabalhos como “Beetlejuice”), bem como aquele que abriu os olhos do mundo do cinema para o potencial interminável da ex-estrela da série adolescente “21 Jump Street”, Johnny Depp. Depp e Burton já perderam a conta dos filmes nos quais colaboraram, e com boa razão: a junção dinâmica do universo caleidoscópico de Burton e da tridimensionalidade e sombreado que Depp empresta aos personagens que doutra forma seriam simplesmente bidimensionais (ahem, “Piratas das Caraíbas”) é uma das mais mágicas fórmulas do cinema actual e esperemos que se mantenha firme nos anos que vêm. O Edward de Depp é um ser acostumado às sombras mas que demonstra uma tal vontade de se integrar, de ser amado, que nem todas as suas diferenças e excentricidades deixam de fazer o espectador relacionar-se com ele. Mesmo quando o conto de fadas acaba e o filme apropria-se de um tom de crítica social ao tratamento da diferença e (não leiam mais se querem ser surpreendidos!) Edward é obrigado a refugiar-se de novo no seu castelo sombrio, ele não se sente rancoroso mas grato com o facto de que, mesmo por um curto período de tempos, foi aceite e fez amigos. É especialmente interessante observar a evolução das reacções de Edward aos acontecimentos: é dócil e fascinado, passa a dócil mas levemente mecanizado (como evidenciado pela sua resposta serializada a toda a gente que lhe propõe “apresentar um médico” para tratar das suas mãos), depois a apaixonado cego, confuso e furioso, assustado mas resignado e, no fim, é simplesmente Edward, um personagem excepcional que marcou a história do cinema em si só, embora estivesse rodeado de um dos melhores imaginários que há na indústria do presente e de actuações secundárias de alto nível, com destaque para o falecido Vincent Price, Winona Ryder, outra veterana de Burton, Diane Wiest, Kathy Baker como a luxuriosa vizinha que está de olho em Edward durante todo o filme (é interessante ver que, embora – tenha iniciado a campanha contra Edward porque este recusara os seus avanços, a emoção nos seus olhos quando pensa que Edward morreu é genuína e forte) e Alan Alda, recentemente Óscar de Melhor Actor Secundário, que está de morte neste filme como o pacato marido de Peg.
Com a entrada de Winona Ryder na cena a meio do filme, este passa da excêntrica comédia de um rapaz fora do normal a adaptar-se, à sua maneira, ao mundo “apple pie” no qual caiu de pára-quedas ao choque quase que sucessivo de Edward contra paredes quando a natureza humana daqueles que, a princípio, tão bem o receberam, se revela finalmente nas suas acções mutáveis aquanto a sua diferença e acaba numa nota altamente emocional – afinal, não é este filme um conto de fadas? – que pode não agradar a alguns mas que decerto deixará uma lágrima ao canto do olho dos mais sensíveis. “Edward Scissorhands” é, portanto, uma comédia negro-naïve acerca da diferença, do que é anormal e do que é aceitável e como as duas noções podem diferir dependendo de onde se observa – no final, o espectador é convidado a acreditar que a normalidade cinzenta do bairro de Peg é a verdadeira força aberrante e o rapaz criado em laboratório, crescido na solidão de um castelo em ruínas, tendo lâminas por mãos, a normalidade – com uma carga emocional muito grande, um filme que pode ser igualmente apreciado pelo método de narração da história como pela mensagem que acarreta. Alguns críticos podem dizer que Burton não tinha, nesta fase da sua vida e da sua carreira, a experiência ou a habilidade necessária para levar esta história única poderosa a tão bom porto como deveria, mas o Tomatometer (do site RottenTomatoes.com, um agregador de críticas de cinema) não mente: com esmagadora maioria este filme é recomendado e, como tantos outros, também eu o recomendo.