sábado, 28 de junho de 2008

Crítica de cinema: "Embriagado de Amor" ("Punch Drunk Love" - 2002)

Uma visita ao clube de vídeo…
“Embriagado de Amor” (Punch-Drunk Love), de Paul Thomas Anderson (2002), com Adam Sandler, Emily Watson, Phillip Seymour Hoffman, Luis Guzmán


O mais recente e discutivelmente o mais conhecido dos filmes realizados pelo perturbadoramente talentoso Paul Thomas (às vezes, abreviado para P.T.) Anderson esteve nomeado para Melhor Filme na edição dos Óscares da Academia de 2007 e entitula-se “Haverá Sangue” (There Will Be Blood), ele próprio um título digno de aclamações, embora não para todos os temperamentos; no entanto, é da desventura de P.T. Anderson na comédia romântica, amplamente entendida, que gostaria de vos falar, no seu filme de 2003 “Embriagado de Amor”, sucessor do criticamente aclamado “Magnólia”. De certa forma, em traços gerais, “Haverá Sangue” e “Embriagado de Amor” não poderiam ser mais diferentes: o primeiro, uma fria e realística viagem à fealdade da natureza e da ganância humana com o pano de fundo da exploração petrolífera no oeste americano em inícios do século XIX, o segundo, a saga corriqueira de um homem em tudo comum, tímido, embora dado a repentinos ataques de raiva titânica, na sua luta no dia-a-dia para suceder nos negócios, não deixar que lhe passem a perna por cima, controlar a sua vida e, mais importante, encontrar o amor. No entanto, é surpreendente o quanto os dois filmes se aproximam: a visão do realizador está bem presente na construção de dois ambientes, de outra forma completamente distintos, mas demarcados pela mesma aridez compacta e, por vezes, algo opressora, embora em tudo comum e bem conhecida, que prende o espectador ao assento e o obriga a tomar atenção ao écran, mesmo que nada se passe nele por uns bons cinco minutos – o estilo pausado de narração da história pode até aborrecer alguns dos espectadores mais habituados à constante acção e às explosões em intervalos de dez minutos que outros filmes oferecem, mas faz tudo parte da atmosfera opressivamente realista característica deste realizador, que nos faz acreditar que estamos a presenciar os acontecimentos do filme com os nossos próprios olhos, na vida real, sem os artifícios e os floreados do cinema. Tudo isto, emparelhado com linhas de história em espiral que acabam por se completar a si mesmam, mesmo que passemos o filme a coçar a cabeça em confusão e com personagens tridimensionais, com qualidades e defeitos discerníveis, dadas a interacções e reacções naturais acaba por resultar na deliciosa, se bem que ligeiramente excêntrica trip que nos proporcionam os filmes de Anderson, a qual um toque de loucura aqui e ali em nada a corta, apenas sublinhando-a e tornando-a cada vez mais natural.


“Embriagado de Amor” é, sim, uma comédia romântica, na sua essência, protagonizada pelo conhecido cómico popular Adam Sandler; no entanto, como já disse, esta comédia romântica pouco tem a ver com a regular concepção do género e este filme em nada se compara com os restantes trabalhos de Sandler na sempre popular “comédia em série” da indústria de Hollywood. O filme segue Barry Egan, um homem cronicamente tímido subjugado pelas suas sete irmãs em todos os aspectos da sua vida, lutando contra a rotina que o vai afundando, gradualmente, numa depressão da qual ninguém se apercebe. O dia-a-dia cinzento de Barry, um homem que há muito se esqueceu que tinha sonhos, habituado a ser pisado por todos, a esconder as suas emoções e a não esperar nada da vida, é marcado por pontuais ataques de fúria violenta, a canalização de toda a frustração não ventilada propriamente durante a sua vida corrente. Para combater a solidão, Barry acaba por ligar para uma linha erótica procurando pura companhia… e acaba enrolado num esquema de chantagem e extorsão de dinheiro montado pelo personagem interpretado pelo monumental Phillip Seymour Hoffman. Entretanto, um estranho e curioso amor vai desabrochando entre Barry e uma misteriosa mulher, Lena, cuja presença apática será suficiente para fazer Barry descobrir novas forças que ele nunca soube que tinha.


O equivalente visual a assistir a “Embriagado de Amor”, para terem uma ideia em geral, é um borrão de luz e cores em permanente e lenta mutação no meio de um universo cinzento, plano, pouco atraente: é uma viagem alucinada à beleza simples e infantil que pode existir na mais hostil das situações: a vida corrente. Barry é um homem que perdeu a sua humanidade – como não a terão perdido todos os personagens do filme? – para se adaptar ao ambiente, para funcionar num mundo que não espera mais dele do que ser um personagem de fundo, uma mobília sem sonhos, sem necessidades, sem identidade, num mundo mecanizado e cruel onde a lei é comer ou ser comido – literalmente – e que a re-encontra no seio de um amor tão puro, tão natural, tão quase que infantil que poderia ter sido importado de um conto de fadas – e que, ao mesmo tempo, dá a sensação de ser um daqueles pequenos milagres que acontecem todos os dias, debaixo dos nossos narizes, entre estranhos, entre conhecidos, entre nós mesmos, aos quais raramente se dá atenção porque há que funcionar, há que produzir, há que viver, se a tal se pode chamar vida. A relação de Barry e Lena em “Embriagado de Amor” destaca-se do ambiente Andersoniano no qual foi imergida como se destaca o desenho de uma criança que usou todos os lápis da caixa colado à parede imunda de uma sala de chuto. Tudo isto encarreirado com uma tal leviandade e jovialidade – não presente, digamos, em “Haverá Sangue”, talvez a maior soante diferença entre os dois últimos filmes de P.T. Anderson – que não deixa de nos tocar, às quais não se sai indiferente.


É um filme que fica convosco. O seu simbolismo aplica-se nas vidas correntes de cada um de nós e acho que é esse o verdadeiro poder da mensagem de Anderson. Por muito patético e solitário que Barry Egan nos pareça, há um pequeno Barry Egan em cada um de nós, e isso leva-nos a querer fazer alguma coisa sobre o assunto.


Que mais posso eu dizer? As performances são do melhor. O destaque é, claro está, do protagonista, Adam Sandler, que prova neste filme estar completamente desaproveitado nas comediazitas básicas pelas quais fez nome em Hollywood. Sandler desempenha um papel assombrosamente relacionável com a dose certa de excentricidade para o tornar um personagem viciante – uma das melhores actuações da sua carreira. Emily Watson, o par romântico de Sandler, desempenha o seu papel com uma fleuma carismática que serve de perfeito exemplo em como os personagens deste filme falam mais alto pelos seus silêncios do que pelas suas falas – mas quando têm de falar, ó se falam. Claro está, não se pode esquecer Phillip Seymour Hoffman, um dos mais versáteis e talentosos actores desta geração e na minha lista de preferidos pessoais, no tipo de papel que desempenha melhor (sem ofensa ao extraordinário “Capote”) – o de sacana, se bem que considero que o tempo de antena que lhe foi dado mal lhe deu espaço para realmente brilhar. A estrela do filme é, então, e sem sombra de dúvidas, Sandler, que só tem a perder em voltar para o tipo de filmes que fazia anteriormente.


Quanto ao potencial comédico? Não se trata de comédia do género de Judd Apatow ou mesmo de Richard Curtis, de rir às gargalhadas. São apenas pequenas situações inseridas no espírito geral do filme que estimulam bons sentimentos cá dentro – o plano recorrente de Barry durante todo o filme de se aproveitar de uma promoção defeituosa promovida por uma linha de comida instantânea que lhe permitirá acumular milhões de milhas aéreas a custo mínimo, que o leva a comprar montanhas e montanhas de pudim, a bem conseguida fuga aos clichés do cinema comercial – quando Barry tenta usar as suas milhas para seguir Lena até ao Havai, assim, noutro tipo de filme, providenciando o espectador com a verdadeira razão, em termos de desenrolar da história, para a acumulação maníaca de pudim, as milhas só são descontáveis dentro de 6 a 8 semanas. Noutro filme Barry estaria de graça, irrealisticamente, dentro do avião em três tempos, mas tal como na vida real, as coisas não correm sempre bem (e, segundo a lei de Murphy, quanto mais potencial há de as coisas correrem mal, pior elas correm) e Barry é forçado a comprar o bilhete – e o brilhantismo dos protagonistas – a cena de insultos entre Sandler e Seymour Hoffman ao telefone tem que ser incluída nos clássicos da comédia rudimentarmente elaborada – que aliviam a pressão de “Embriagado de Amor” e o tornam o filme leve para o espectador de cinema pensante de eleição.


Concluindo, digo-vos o que vos digo acerca de “Haverá Sangue”: não é um filme para todos, muito menos para os inquietos por acção. Mas é fantástico, um balde de água fresca num dia quente de Verão e, portanto, vai-vos altamente recomendado.

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